quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Conto de Desencontro

por Isoca

Comecei a procurar pelas peças perdidas. O quebra-cabeça que vinha fazendo estava praticamente pronto, mas faltavam algumas peças, curiosamente de uma mesma área daquele imenso tabuleiro. Procurei pela casa inteira, em cada cantinho possível e não consegui encontrar. De repente, me veio uma imagem do jardim em frente à casa, o que só poderia interpretar como sendo meu sexto sentido me incentivando a procurá-las por lá.

Era um jardim mal cuidado, o mato estava na altura dos meus joelhos e, olhando de longe aquela imensidão, não havia nada que se destacasse. Tracei uma estratégia para não deixar de olhar nem um único centímetro daquele terreno, comecei a executa-lãs e estava tão concentrada na minha busca, que deixei escapar que havia algo ali além do mato.

Após alguns minutos, percebi que algo me afligia. Não sabia ao certo o que era, mas me desconcentrou. Parei e olhei ao meu redor e, naquele instante, pude perceber que estava rodeada de flores bonitas e vivas: rosas, lírios, flores do campo, dentre outras. Fiquei um pouco mais ali deslumbrada com o que estava vendo. Como podia um simples jardim mal cuidado esconder tantas surpresas?

Caminhei um pouco mais e me deparei com uma plantinha que me parecia familiar, mas não conseguia identificá-la. Muito intrigada, sentei-me para observá-la melhor. Percebi que ela parecia não ter o mesmo vigor das outras flores daquele jardim e havia algo parecido com um pó que a revestia. Como era misteriosa! Coloquei a mão na planta delicadamente e tentei tirar um pouco daquele pó, mas era tão fino e grudado nela que não obtive muito sucesso. Então me contentei em sentar e contemplá-la por alguns minutos mais, até que me dei conta que tinha que voltar à casa.

Fiquei com aquela imagem na minha cabeça o resto do dia e não via a hora de acordar no dia seguinte para revê-la. Desta vez levei água e um pano que me ajudasse a limpá-la e passei alguns bons minutos fazendo exatamente isso cuidadosamente. Após tirar o excesso do pó grudado na flor, fiquei pasma por alguns segundos pelo que acabara de descobrir: era uma orquídea. Como poderia ser tão linda, rainha e... orquídea, sem ser alegre. Sorri e quando me dei conta já estava cantando pra ela a canção do mestre Pixinguinha. Foi feita pra rosa, mas pra mim naquele momento eu tinha certeza que tinha sido feito para aquela orquídea encantadora:

"Tu és divina e graciosa, estátua majestosa
Do amor, por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma da mais linda flor de mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor
Se Deus me fora tão clemente aqui neste ambiente
De luz, formada numa tela deslumbrante e bela
Teu coração, junto ao meu lanceado
Pregado e crucificado sobre a rósea cruz do arfante peito teu
(...)
Tu és de Deus a soberana flor
Tu és de Deus a criação
Que em todo coração sepultas um amor
O riso, a fé, a dor em sândalos olentes cheios de sabor
Em vozes tão dolentes como um sonho em flor
És láctea estrela, és mãe da realeza
És tudo enfim que tem de belo
Em todo resplendor da santa natureza (...)
"

E passei mais algumas horas somente admirando-a e cantando.
Aquele momento com a minha flor tinha sido mágico e passei o resto do dia a lembrar dela, o que me deixou até mesmo ansiosa para poder revê-La no dia seguinte
A noite se foi e acordei com um sorriso enorme, o sol já tinha aparecido e eu já podia ir lá encontrá-la. Ao chegar ao local não consegui acreditar no que estava vendo. Aquele pó estava todo de volta cobrindo a orquídea. Como aquilo era possível? Não tinha a resposta, mas imediatamente voltei à casa pra buscar a água e o pano para limpá-la novamente. Depois simplesmente fiquei conversando com ela e cantando a nossa música. E segui fazendo esse mesmo ritual dias e dias sem pestanejar. Às vezes tinha a impressão que o pó diminuía, outras vezes concluía que era somente o meu querer influenciando meus olhos.

Um belo dia, exaurida por aquela rotina de limpá-La todos os dias, fui somente até ela e fiquei a observá-la tentando desvendar a origem daquele pó que crescia do dia pra noite. Era um mistério que eu não conseguia desvendar e então comecei a conversar com ela em voz alta perguntando o porquê daquilo.

- “Ela está se protegendo, minha cara jovem”, alguém respondeu. Olhei pra trás e vi um senhor que não conhecia, mas que parecia ser muito sábio e grande conhecedor daquele jardim.
- “Mas se protegendo de que? Eu não entendo”, respondi.
- “Ela cria essa substância pra se proteger das sensações profundas como o frio, o calor, a chuva, o vento, o toque, o cheiro da terra molhada...”, retrucou.
- “Mas como pode uma linda orquídea se proteger das coisas que são tão essenciais para o seu vigor? Como consegue viver sem sentir o olor das outras flores e exalar o seu próprio? E como será na primavera? Ela sempre será triste?”, perguntei num tom de desabafo e desapontamento.
- “São as escolhas da vida”, disse o senhor com a expressão um pouco decepcionada. Virou as costas e foi embora.

Nunca mais o vi em lugar nenhum.
Senti uma enorme frustração e tristeza por perceber que o meu carinho e dedicação não eram suficientes pra minha orquídea se sentir mais forte e, assim, deixar de se proteger daquelas coisas que a fariam mais feliz. Fiquei um pouco mais de tempo lá a contemplando, mas decidida a não cumprir mais aquela rotina, cantei pela última vez a nossa música como uma grande despedida e voltei pra casa.

Algumas semanas se passaram e, recordando de todos os fatos passados nos dias que estive naquele jardim, me veio a lembrança abrupta do meu quebra-cabeça e das peças perdidas que procurava. Meu Deus, como fui me esquecer do meu quebra-cabeça? Coloquei como meta pro dia seguinte procurar de novo pelas peças perdidas em cada cantinho da casa.

Ao amanhecer no dia seguinte, me vi de novo procurando as mesmas peças nos mesmos cantos da casa, mas como estava mais tranqüila, enfim consegui ver o que olhei e não enxerguei. As peças estavam logo ali, escondidas em baixo da cama, ao lado do quebra-cabeça. E como pude eu não achá-las se estavam ao meu lado?

Enfim completei meu quebra-cabeça que era baseado em uma foto de uma paisagem de algum lugar lindo e tranqüilo, com um lago, montanhas e jardim num belo dia de primavera, quando o céu está azul e as flores estão mais radiantes do que nunca. E então, olhando-o completo ali na minha frente, me sentindo super orgulhosa, uma grande surpresa tomou conta de mim. As peças perdidas faziam parte do jardim daquela paisagem e a ultima peça que usei para completar o quebra-cabeça era de uma orquídea.

Fiquei atônita pela coincidência. E depois, com mais calma, reparei como aquela orquídea da foto era diferente daquela outrora “minha orquídea”. Ela tinha vida e era alegre, sem medo das sensações e emoções, muito mais parecida comigo. E foi nesse momento que um ciclo se fechou e um novo se abriu já que muitas coisas começaram a fazer sentido pra mim.

Voltei algumas vezes àquele jardim, mas nas poucas vezes que fiz isso, olhava de longe aquela orquídea com o pó. Nunca deixei de torcer para que um dia ela volte a ser uma flor com vigor que irradia alegria pra todo aquele jardim. Tenho a certeza que um dia ela conseguirá.

2 comentários:

  1. Lembrei da historia do Pequeno Principe e o amor que ele sentia pela rosa dele...e como as vezes as coisas acontecem na nossa vida revelando um significado especial...
    Muitas vezes criamos ests "pó" em volta de nós, não é? Uma "casca" natural..igual 'a proteção da orquidea...
    Vamos com tudo amiga!!!
    Beijos!!!

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  2. É exatamente o espírito da coisa.
    B

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Solteira no Rio de janeiro